terça-feira, 27 de maio de 2008

Desenho


Neide Duarte *


Foto: Morguefile


União de Vila Nova, São Miguel Paulista, São Paulo. Só se entra no bairro de duas formas: por baixo de uma ponte da linha do trem ou, na outra ponta, por cima da linha do trem. Do outro lado tem um riacho, mais adiante uma estrada, a Rodovia Ayrton Senna.

Bairro isolado. Vários terrenos são usados como lixões.

Numa área descampada, crianças brincam de rolar dentro de um barril de latão. Um ou dois ficam lá dentro, gritando, enquanto outros meninos empurram e vão girando o latão.

Alguns meninos jogam futebol. Outros empinam pipa.

Menos meninas nas brincadeiras. Os meninos sempre ocupam mais as ruas do que as meninas.

Eduardo tem 11 anos, mas não gosta da rua. Prefere ficar em casa e desenhar.

A casa dele não tem muito espaço. Não que seja tão pequena, mas ali não reina nenhum tipo de organização. A mãe vai juntando roupas sujas e limpas em sacolas pelo chão da sala, do quarto, da cozinha. O sofá mal dá para oferecer uma vaga, imprensado que está entre a mesa da sala de jantar e as cadeiras.

Tudo o que poderia ser usado como mesa está tomado de coisas velhas e sujas. Poeira por toda parte, cheiro de mofo, umidade, paredes enegrecidas e esverdeadas pela umidade.

No quarto, roupas penduradas pelas guardas da cama, algumas jogadas no chão, sacolas de roupas, gatos adormecidos.

Eduardo, com seu desenho, vai colocando em ordem o mundo em que vive e o caos do papel em branco

Eduardo não se importa. Improvisa mesas pela casa: um pedacinho do braço do sofá que sobrou vazio, os próprios joelhos, ou então a parte de cima do beliche, onde dorme.

Eduardo não tira os tênis para subir no beliche. Mesmo depois de ter caminhado na rua de terra onde mora. O lençol está tão encardido que não fará diferença acrescentar ali uma nova sujeira.

E quando o Eduardo começou a desenhar, a mãe dizia: “Mas isso você já sabe. Pára de desenhar! Você precisa aprender outras coisas, de desenho já está bom.” Mas Eduardo é persistente, quer ser desenhista e sabe, apesar da pouca idade, que esse aprendizado não tem fim.

Por isso ele nem dormiu na noite que antecedeu o começo da realização do seu sonho: sua primeira aula de desenho e escultura, numa Organização Não-Governamental criada por um ex-presidiário, lá no bairro. Na cadeia, o ex-presidiário virou escultor e agora passa o que aprendeu para os meninos da vila, junto com outros monitores.

As linhas do lápis de Eduardo formam homens repetidos, semideuses, homens voadores de voz grave e assustadora, homens de chifre, de olhos vermelhos, músculos impensáveis, homens que com um simples gesto de braços deslocam montanhas, destruidores de tudo.

Os desenhos são um retrato do que vê na televisão. Heróis, anti-heróis, agentes do bem e do mal, seres inexplicáveis, desumanos na sua aparente humanidade.

E, na aparente desordem da vila e da casa onde mora, Eduardo, com seu desenho, vai colocando em ordem o mundo em que vive e o caos do papel em branco.




* Neide Duarte é jornalista, dirigiu e apresentou durante sete anos o programa
Caminhos e Parcerias, da TV Cultura, e hoje é repórter especial da Rede Globo

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